10 de nov. de 2010

Gay Drama

Não dá pra deixar de pensar no quanto a teledramaturgia brasileira é pobre (pra não dizer podre) ao assistir uma série como Glee: cheia de música, ironia e muito humor negro, além de vários questionamentos e reflexões sobre a sociedade (norte-americana), cuja qualidade conseguiu sobreviver ao "boom" do sucesso na primeira temporada. Claro, as dublagens dos números musicais ainda são muito ruins, mas é (eu creio) a primeira experiência de série musical registrada no mundo. Passando por baixo disso, há a ilustração (ao que me parece) do que é a base da sociedade americana: a escola.
Retrata com primazia a batalha entre os "populares" e os "impopulares" por reconhecimento e\ou adoração dos "não-populares"; os jogos e esquemas de (e por) poder, cheios de corrupção e conflitos de caráter e ideologia; os limites entre interesses pessoais, interesses comuns e interesses alheios; sexo e gravidez na adolescência; dificuldades e provações das pessoas que não estão adequadas aos padrões da moda; choques culturais dentro de uma mesma sociedade; quão normal é a vida de um cadeirante;
E retrata, como jamais vi, o cotidiano de um garoto adolescente assumidamente homossexual. (A Glória que me perdoe, até acho que valeu a pena, mas ela me pareceu um pouco fantasiosa e um tanto extremada ao retratar um jovem gay no Brasil.) Como se não bastasse, o coitado do garoto é o único em sua escola "fora do armário". (OK. Aqui vai começar um vocabulário bem GAY, portanto, aos que não compreenderem bem, vai um glossário lá no final!) Aos ativistas (que eu não sou, por razões unicamente pessoais) e curiosos, aqui vai a dica: as pessoas que não são gays, ou simplesmente escondem, poder até ter ciência do que é estar "fora do armário", mas jamais poderam saber. Bom, jamais poderiam, pois agora podem: o cotidiano de Kurt é tão bem retratado que qualquer pessoa que assistir, ouvir, ou mesmo ler sua história pode, sim, conhecer, compreender, e até compartilhar, essa situação tão peculiar, e tristemente tão comum hoje em dia.
"Ah! Pára, viado! Ele é um esteriótipo!", você vai dizer e eu respondo "Não, ele não é!". Kurt não é uma bichinha quá-quá que adora tudo que é lindo, endinheirado, famoso e pirocudo; É só um garoto tentando se adequar ao ambiente onde vive, sem abandonar aquilo por que prima, seus gostos, suas idéias, sem ser atropelado pelo que as "pessoas normais" consideram adequado, ou correto, que, por vezes, como qualquer pessoa normal (e não "pessoa normal") age contrariando a si próprio pra se encaixar nesse ambiente.
Certo, tem um pai compreensivo, o que facilita muito as coisas. Mas, pelamordedeus!, a série não é uma tragédia, ele não precisa apanhar nem ser expulso pra ser um bom exemplo! Na verdade, é justamente por ter um relacionamento tão bom com o pai que é possível se fazer um retrato tão primaz do cotidiano de um adolescente "fora do armário". Vejam bem, todo mundo sai de casa um dia, então esse tipo de relacionamento, tão glorificado pela sociedade cristã, não tem a menor importância. Afinal, o que é um pai e uma mãe, perto de centenas de pessoas que te orgerizam e molestam simplesmente por você ser o que é? Porque a bicharada fica toda ouriçada, com medo da família, e esquecem que é com todo o resto do mundo que vão lidar pelo resto da vida, que é o resto do mundo que se sente ofuscado e ofendido constantemente com a coragem do homossexual assumido, que os conhecidos podem ser os que mais magoam, mas os anônimos são os que mais perseguem e machucam. E é essa a batalha do intrépido Kurt: enfrentar os anônimos, as pessoas com quem ele tem de lidar todos os dias, o tempo inteiro. E no meio de tudo isso, é óbvio, e lógico, que nosso intrépido companheiro sofre, e sofre MUITO. (E é aqui que eu friso, se hovesse uma batalha com a família, essa dor jamais seria retratada, não numa sociedade cristã.) E, mais que qualquer personagem da série, nosso companheiro merece encontrar a felicidade.
Felicidade essa que, ao que parece, chegou no sexto episódio da segunda temporada (Rápido, não?), originalmente exibida no dia nove de novembro de 2010. Chegou um pouco forçada, mas mesmo assim válida, e muito bem desenvolvida, na forma de um personagem. Sim, é um bofe! Mas não é um bofe qualquer. O rapaz, que estuda e faz parte do clube de coro de outra escola, se chama Blaine, e a maior frustração de sua vida é, pasmem, ter fugido da "caça às bruxas homofóbica" de sua antiga escola, procurando abrigo no paraíso que é sua atual escola. Blaine chegou, não para ser o par de Kurt, como muitos proferem, mas para ajuda-lo a enfrentar as afrontas do ambiente escolar ao qual pertence. E não só dos héteros homofóbicos de plantão, mas também, e principalmente, de um gay homofóbico (que, porventura, "abriu o jogo" ao roubar um beijo de Kurt, no episódio em questão.)! O romance? Eu deduzo que pode haver uma disputa dos dois novos personagens por nosso herói, e pode ser que o tal do Blaine seja só uma bicha suja querendo tirar uma casquinha do Kurt (Isso me parece mais plausível com o histórico da série, mas eu realmente torço pra que não seja!), e só virá mesmo pra mostrar que, no meio de tanta dor, a felicidade existe, chega, e compensa. E como compensa!
Quanto a Glee, não há nada mais a dizer.
Quanto à teledramaturgia brasileira: Só lamento ver que a mídia brasileira profere uma liberdade inexistente, boicotada pela própria mídia. Essa não é a primeira vez, nem será a última, que os americanos produzem séries com abordagem tão primaz de temas tão cotidianos e tão polêmicos.
E à midia brasileira, vai a dica: deixem de transformar dramaturgia em bolso! Aprendam com os americanos (que por mais defeitos que tenham, possuem essa valiosa qualidade) a transformar bolso em dramaturgia.

---GLOSSÁRIO---
Fora do armário = assumidamente homossexual
Bichinha quá-quá = rapaz homossexual muito alegre e muito insosso
Pirocudo = homem com pênis muito grande
Pelamordedeus! = Pelo amor de Deus!
Bicharada = coletivo de homens homossexuais
Bofe = Homem, geralmente alvo de desejo.

27 de out. de 2010

O Minotauro (Sacrifício)


[Labirinto. Asterião grunindo e bufando, andando a esmo. Um ruído de espada desembainhada. Asterião olha para trás e se depara com um rapaz em vestes atenienses, empunhando uma espada e correndo em sua direção. Asterião se esquiva da primeira investida e arranca uma pedra da parede. O rapaz fica paralizado.]

ASTERIÃO:

Tá assustado com isso? Então é melhor ir embora!

ATENIENSE 1:

[Atacando Asterião.] POR ATENAS!

ASTERIÃO:

[Usando a pedra para se defender.] Você quer parar com isso!

ATENIENSE 1:

[Atacando Asterião.] Eu devo libertar Atenas!

ASTERIÃO:

[Arrancando a espada das mãos do rapaz.] Ótimo! Então vá falar com Minos! Não vai ajudar em nada invadir meu espaço!

ATENIENSE 1:

[Atacando Asterião com as mãos.] Eu não estou invadindo nada, besta dos Infernos!

ASTERIÃO:

[Apontando a espada para o jovem.] SAI DA MINHA CASA!

ATENIENSE 1:

[Erguendo a pedra que Asterião arrancou da parede.] MORRA!

ASTERIÃO:

[Para si.] Merda! [Larga a espada para segurar a pedra atirada pelo rapaz.] QUAL É O SEU PROBLEMA!

ATENIENSE 1:

VOCÊ! O CASTIGO DE ATENAS! VOCÊ TEM QUE MORRER!

ASTERIÃO:

[Fúria nos olhos. Para si.] Minos. [Agarra o jovem pelo pescoço e dá-lhe um cascudo forte. O rapaz desmaia.]




[Cnossos: salão de festas. Algumas pessoas celebrando ao redor da mesa. Minos está sentado à extremidade mais distante da porta na mesa. Asterião abre a porta com um estrondo. Silêncio. Todos olham para ele com receio. Ele atravessa o salão até alcançar Minos, arrastando o jovem ateniense pela roupa.]

ASTERIÃO:

[Atirando o jovem sobre a mesa, diante de Minos.] Explique!

MINOS:

Ah! Isso? Só um presentinho! Tem mais seis lá... Ah, sim, e sete moças também.

ASTERIÃO:

O castigo de Atenas?

MINOS:

Não se meta nos meus assuntos, garoto.

ASTERIÃO:

Eu não estou de acordo com isso!

MINOS:

Não interessa. Se não estiver contente com isso, livre-se deles!

ASTERIÃO:

Eu vou botar todo mundo pra fora.

MINOS:

E eu os ponho lá dentro de novo.

ASTERIÃO:

Por quê isso?

MINOS:

Vá se acostumando! Daqui a nove anos vem a segunda leva.

ASTERIÃO:

Segunda leva?

MINOS:

E enquanto você estiver vivo, mais e mais virão.

ASTERIÃO:

É sério isso?

MINOS:

Este é o preço pela morte de Euriges.

ASTERIÃO:

MAS EU NUNCA FIZ NADA CONTRA EURIGES! E NENHUMA DESSAS PESSOAS!

MINOS:

Volta pro seu labirinto, vai, garoto! Eu não estou com paciência pra você hoje!

ASTERIÃO:

Nunca esteve. E é por isso mesmo que a gente está sempre brigando.

MINOS:

ISSO NÃO É VERDADE!

ASTERIÃO:

Eu desisto, sabe? Aquela profecia não era sobre mim mesmo. Eu não sei por que cargas d'água eu ainda me preocupo com você.

MINOS:

Você quer-

ASTERIÃO:

Eu quero que você se dane! Você e esse seu orgulho infeliz! E você pode se preparar porque você não vai gostar do que você vai ver!


[Asterião sai, derrubando todos os curiosos que ficaram no caminho até a porta. Minos encara a porta por alguns segundos, depois encara o ateniense sobre a mesa. Ele estende a mão para tocar o ateniense quando Asterião volta e atravessa o salão para pegar de volta o ateniense.]

MINOS:

Eu achei que você tinha deixado ele aqui pra mim.

ASTERIÃO:

Sinto muito. Ele faz parte do pacote. [Sai, carregando o ateniense sobre um ombro.]




[Casa de Dédalo. Noite. Ícaro dorme sob a janela. Barulho de cascos na rua. Asterião surge na janela, usando o capuz habitual, e saculeja Ícaro.]

ASTERIÃO:

Ícaro? Ícaro! Acorda!

ÍCARO:

Agora não mamãe, eu quero dormir mais um pouco.

ASTERIÃO:

Acorda, caralho!

ÍCARO:

[acordando] Que boca suja! Não é a mamãe, com certeza não é!

ASTERIÃO:

Garoto, você é preguiçoso, hein!

ÍCARO:

[acordando] E você, quem é?

ASTERIÃO:

Eu vim cobrar o favor que você me deve.

ÍCARO:

[Levantando, de supetão.] Minotauro?!

ASTERIÃO:

Que bom que você lembra!

ÍCARO:

Só pra registrar, minha vó não é uma besta dos infernos!

ASTERIÃO:

Não é o que seu pai diz!

ÍCARO:

Ele não vale! Ele detesta a minha vó.

ASTERIÃO:

Dá pra você vir me ajudar! Eu estou com um problema sério aqui!

ÍCARO:

E eu vou ter que pensar pra isso é?

ASTERIÃO:

É pra isso mesmo que eu vou precisar da sua ajuda.

ÍCARO:

Eu estava com medo que fosse isso...

ASTERIÃO:

Deixa só seu pai ouvir isso. Ele te esfola!

ÍCARO:

[Pulando a janela.] Eu gostava mais de você quando você era só uma aberração!

ASTERIÃO:

[irônico] Você gostava de mim é?

ÍCARO:

[sorrindo] Qualquer pessoa que chama minha vó de besta merece um pouco da minha atenção.

ASTERIÃO:

Que bom que essa caixola já está funcionando!

ÍCARO:

Então, qual é o problema?

ASTERIÃO:

Bom, básicamente, 14 atenienses no labirinto. Inocentes, presos e perdidos.

ÍCARO:

Você já tentou conversar com eles?

ASTERIÃO:

Foi uma experiência desagradável.

ÍCARO:

E qual é a solução?

ASTERIÃO:

Eu pensei em convencê-los a saquear a cidade, mas acho que seria muita sacanagem.

ÍCARO:

Manda eles de volta pra Atenas!

ASTERIÃO:

Inviável. Vai dar uma porção de problemas pra ilha, e já basta de gente pagando pelo que não fez.

ÍCARO:

Mate todos então!

ASTERIÃO:

Você anda dando muito ouvido a esse povo futriqueiro!

ÍCARO:

Pra sua sorte, isso é uma grande verdade!




[Cnossos. Manhã. A porta da cozinha se abre. Dela, sai a criada 2, cantarolando alguma coisa, caminhando serelepe. A criada vê uma pessoa estranha, com vestes atenienses, caída no chão, a uma grande distância dela. A criada vai se aproximando da pessoa.]




[Cnossos: quarto do rei de Creta. Manhã. Minos e Pasífae, tomando café.]

MINOS:

[resmungando] Aquele garoto abusado! Quem ele pensa que é pra me tratar daquele jeito!

PASÍFAE:

Pois eu dou a maior força pra ele, Minos. Você perdeu completamente o juízo.

MINOS:

Pronto, vai-


[Um longo grito de horror corta a discussão do casal. Pasífae levanta assustada, derrubando a comida que está em seu colo, e corre até a janela pra ver o que aconteceu.]

PASÍFAE:

Minos, eu acho melhor a gente ir ver isso.




[Cnossos. Manhã. A criada 2 está sentada no chão, tremendo de horror, olhando fixamente para o ateniense caído no chão. Pessoas vão se aglomerando ao redor dele, todas com a mesma expressão de horror, mas nenhum tão atormentado quanto a criada. Pasífae chega correndo, cortando caminho na "multidão", seguida por minos. Ao alcançar o ateniense, Pasífae pára, horrorizada. Minos finalmente alcança Pasífae e vê: um corpo ateniense, o sangue escurecendo a terra, o rosto e alguns pedaços do corpo aparentemente arrancados à mão, um osso exposto mo joelho.]

MINOS:

[Dando um passo pra trás.] Eu não acredito!

PASÍFAE:

Nem eu!

DEUCALIÃO:

E vocês acham mesmo que foi ele quem fez isso?

MINOS:

É bem parecido-

DEUCALIÃO:

Vocês são duas toupeiras! Mas eu reconheço, ele chocou como disse que ia chocar.

PASÍFAE:

Seja como for... é um exagero!

MINOS:

E o senhor sabichão tem alguma outra explicação pra isso?

DEUCALIÃO:

Por quê você não pergunta pro Asterião? Ele vai saber responder.

MINOS:

Você-

DEUCALIÃO:

Eu não vou passar o resto da minha vida perdendo tempo com as tuas bobagens como o resto da família faz! [saindo] Até por quê, é só por causa disso que esse corpo está aí agora.




[Labirinto. Manhã. Asterião, a caminho de seu quarto, nas sombras. Uma voz feminina, assustada, nenhuma paravra, somente ruídos. Asterião pára. Em um dos focos de luz fornecidos pelas frestas, pode-se ver claramente um pé se afastando. Asterião se aproxima com cautela do local onde o pé estava e, encostada na parede, jogada no chão, uma garota ateniense treme. Asterião pára sob a luz.]

ATENIENSE 2:

[Protegendo o rosto com um dos braços.] Aaaaaaaaah! Eu não quero morrer! Socorro!


[Asterião bufa e segue seu caminho, deixando a garota ateniense pra trás. Chegando em seu quarto, encontra Hades, esperando deitado na cama.]

ASTERIÃO:

Não tá um pouco cedo pra sua visita?

HADES:

Não tá um pouco cedo pra suas malcriações?

ASTERIÃO:

Eu estou um pouco irritado.

HADES:

E eu preocupado! Você está dando muita importância a esses atenienses.

ASTERIÃO:

Eles não estão perturbando a sua paz, estão?

HADES:

Eles não são um estorvo tão grande. Até que Ícaro chegou a uma solução sensata!

ASTERIÃO:

Mas eu vou ter que ficar esperando pessoas morrerem. Isso vai demorar...

HADES:

Se for por isso, me disseram que o touro está rumando pra essas bandas. Não vai demorar a chegar aqui.

ASTERIÃO:

(sarcástico) É! Isso me anima muito!

HADES:

Mais que saber que Minos acabou de entar no labirinto?

ASTERIÃO:

Não é possível!




[Labirinto. Manhã. Minos, vagando aleatóriamente pelos corredores do labirinto. Asterião cai do teto, em um feixe de luz, em frente a Minos, assustando-o. Minos cai no chão.]

ASTERIÃO:

O que diabos você está fazendo aqui!?

MINOS:

Você quer me matar de susto, garoto?

ASTERIÃO:

Você tem que sair daqui agora!

MINOS:

Não antes de ter uma conversa- como é que você consegue viver neste buraco?

ASTERIÃO:

[Puxando Minos pelo braço.] Mas era só o que faltava! Você me enfia aqui e eu ainda tenho que ouvir esse tipo de bobagem!?

MINOS:

[Tentando resistir a Asterião.] Ué? Você pode ir pra onde quiser nesta ilha, não é?

ASTERIÃO:

[irritado] Você não veio fazer uma social comigo, veio?

MINOS:

[Encara Asterião por um instante e suspira.] Não. Eu vim pedir uma explicação.

ASTERIÃO:

[Puxando Minos pelo braço, a saída do labirinto refletida em seus olhos.] Eu não tenho nada a explicar.

MINOS:

Como não? Você deixa um corpo mutilado-

ASTERIÃO:

Eu avisei que você não ia gostar...

MINOS:

Dá pra você parar? Pra quê a pressa de me tirar-

ASTERIÃO:

O Touro está vindo. É melhor você voltar pro palácio.

MINOS:

Que se dane o Touro, Asterião!

ASTERIÃO:

[Soltando Minos, voltando por onde veio.] Ótimo! Então fique aí?

MINOS:

[Seguindo Asterião.] Onde está o ateniense?

ASTERIÃO:

Morto, você não viu?!

MINOS:

Deucalião não acredita nisso, e pra falar a verdade, no fundo, eu também não.

ASTERIÃO:

[Pára.] Posseidon é pai de Egeu, sabia?

MINOS:

E o que você quer dizer com isso?

ASTERIÃO:

Que você nunca vai encontrar os atenienses deste labirinto. E que eu vou continuar respondendo às provocações à altura: as suas ou de quem quer que seja que venha perturbar minha paz!

MINOS:

E o que os atenienses têm com isso?

ASTERIÃO:

Minos, você não é burro! [Voltando a caminhar.] E você também sabe que o que você está fazendo não é certo!

MINOS:

Foi a minha decisão! E eu não vou voltar atrás!

ASTERIÃO:

PRO QUINTO DOS INFERNOS AS TUAS DECISÕES! Elas já me encheram.




[Cnossos: quarto de Ariane. Manhã. Ariane olhando além da janela, observada por Catreu.]

ARIANE:

Eu não entendo, Catreu. Como é que o Asterião consegue viver com um monstro que faz uma barbaridade dessas?

CATREU:

[aéreo] Só ele pode, Ariane.

ARIANE:

Mas não devia! Ele devia estar aqui, ao nosso lado! É nosso irmão!

CATREU:

Er... é a tarefa dele, não é?

ARIANE:

Papai é uma pessoa muito ruim! Deixar o filho dele confinado com aquela besta!

CATREU:

Asterião não é filho do nosso pai, Ariane.

ARIANE:

[confusa] Não?

CATREU:

Não. Ele é filho de Zeus.

ARIANE:

Bom. Mesmo assim. É muita maldade.

PASÍFAE:

[Entrando, com Glauco no colo.] Vocês estão bem? [Ariane e Catreu fazem que sim.] Viram Minos por aí? [Catreu faz que não.]

ARIANE:

Ele entrou no labirinto.

PASÍFAE:

Ué? Ele nunca pisou lá!

CATREU:

[desdém] Nem a senhora.

ARIANE:

Deve ter ido azucrinar Asterião, pra variar...

CATREU:

Ariane, esquece isso vai!

ARIANE:

Não dá!

CATREU:

Então finge que esqueceu! [Ariane olha pra ele como quem pergunta "como assim?".] Acredite. Vai evitar uma porção de problemas!

PASÍFAE:

Espero que ele volte logo! O Touro está na cidade!

ARIANE:

Tomara que o Touro estraçalhe ele todo! Assim o Aterião não vai mais precisar morar com o monstro! Nem nós!

PASÍFAE:

Ariane?

CATREU:

Deixa mãe.

PASÍFAE:

Eu achei que alguém já tinha explicado a essa menina!

CATREU:

A gente não pode, esqueceu?

PASÍFAE:

Aprenda a usar as palavras, Catreu! Você vai ser rei, sabia?

ARIANE:

Vocês vão explicar, ou vão continuar me enrolando?

CATREU:

Ele está lá por que ele quer Ariane! Eu já te disse isso! Agora, me dá licensa, eu preciso conversar com a mamãe, tá? [Tira Glauco dos braços de Pasífae e põe na cama.]

PASÍFAE:

Conversar o quê?

CATREU:

[Saindo, levando com ele Pasífae.] Cuida do Glauco!

ARIANE:

É, Glauco. Sorte sua não ter visto o que aquele monstro fez?




[Cnossos: quarto de Ariane. Ariane, deitada na cama, olhando fixamente para a janela, catarolando a valsa de Ariane.]

MINOS:

[entrando] Boa noite, filha.

ARIANE:

[Ainda olhando para a janela.] Oi pai.

MINOS:

Está esperando seu irmão?

ARIANE:

Sim. Ele vem toda noite.

MINOS:

Ele não vem hoje. [Ariane olha para ele. Aproxima-se dela e senta-se na cama.] Eu vim só te dar um beijo. Não precisa me olhar com essa cara. [Beija a testa de Ariane, depois segue para a porta.]

ARIANE:

Pai. [Minos pára.] Me conta uma história?

MINOS:

[Voltando para a cama.] Claro! Que tipo de história você quer ouvir?

ARIANE:

Uma boa história? [Minos se deita na cama, ao lado dela.]

MINOS:

Certo. Então eu vou contar pra você a história da minha mãe.


[Do lado de fora, vê-se da janela de Ariane a luz de uma chama que aos poucos se apaga. Lentamente amanhece. Passaram-se nove anos. Dentro do quarto, a Ariane de 17 anos dorme. Pasífae senta-se ao lado dela e a sacode, suavemente.]

PASÍFAE:

Minha filha. Acorde.

ARIANE:

[Gemendo de sono, os olhos fechados.] Pra quê?

PASÍFAE:

Você já dormiu demais!

ARIANE:

Ah! Eu tô com sono!

PASÍFAE:

É nisso que dá encher a cara de vinho antes de dormir!

ARIANE:

Ah!, mãe! Não chateia vai! [senta-se] E Asterião, como está?

PASÍFAE:

Tá bem melhor, mas se ele continuar naquele labirinto, não vai ficar bom.

ARIANE:

Papai não vai fazer nada, não é? [levanta-se]

PASÍFAE:

Você não vai lá, vai?

ARIANE:

[Pegando um novelo dourado num armário.] Claro que vou!

PASÍFAE:

Ariane, você não devia!

ARIANE:

Eu já disse pra ele ir embora, pra bem longe daqui!

PASÍFAE:

Mas ele não vai sair de perto da gente-

ARIANE:

Nem precisa! Do jeito que vão as coisas, ele nunca mais sai de lá! Ele nem vive mais, morrendo aos pouquinhos naquele buraco! Pra morrer de vez não vai ser muito difícil!

PASÍFAE:

Ele pediu que você não fosse.

ARIANE:

[Encarando a mãe.] O monstro?

PASÍFAE:

Foi o que ele pediu pra dizer.

ARIANE:

[Guardando o novelo, desanimada.] Os sacrifícios chegam hoje?

PASÍFAE:

É provável. Se nada acontecer no caminho.




[Labirinto: quarto de Asterião. Manhã. Asterião, deitado na cama, gemendo, um pequeno corte no topo da cabeça, com uma infecção muito grande em volta, e Afrodite, sentada ao lado dele, segurando um frasco contendo um creme roxeado.]

AFRODITE:

Eu lhe disse que iria encontrar o remédio, não disse.

ASTERIÃO:

[Muita dor.] Obrigado.

AFRODITE:

Você não devia ficar assustando as pessoas por aí. Não ajuda em nada na sua situação.

ASTERIÃO:

[Muita dor, sarcástico.] É mesmo?

AFRODITE:

Por que é que você ainda teima em perambular por aí?

ASTERIÃO:

[Muita dor.] Eu preciso arejar um pouco a cabeça! Aqui dentro não dá pra fazer isso...

AFRODITE:

Não precisava dar uma chifrada no padeiro! Agora fica aí: errou a mira e ganhou uma tremenda duma infecção na cabeça!

ASTERIÃO:

[Muita dor.] Aquele cretino ficou me chamando de-

AFRODITE:

Eu gostava mais de você quando não ligava pra essas coisas...

ASTERIÃO:

[Muita dor.] Deixa de mentira, tia!

AFRODITE:

[Aplicando o creme na ferida de Asterião.] Bom, você era bem mais agradável.

ASTERIÃO:

[Muita dor.] Nunca quis ser agradável mesmo. Se eu deixar barato, esse povo decide vir me perseguir aqui. Aí você já sabe o que vai acontecer...

AFRODITE:

Eu já disse pra vc q eu posso resolver esse problema.

ASTERIÃO:

[Muita dor.] Só se você convencer Posseidon a me deixar em paz.

AFRODITE:

Mas Posseidon é muito cabeça-dura!

ASTERIÃO:

[Muita dor.] Então não me fala mais sobre isso.

AFRODITE:

Mas eu quero ajudar!


[Asterião e Afrodite se olham por um longo tempo. Afrodite volta a espalhar o creme.]

ASTERIÃO:

[Muita dor.] Cuide da minha irmã, Ariane. Ela é muito aluada.

AFRODITE:

Mas que quero ajudar você!

ASTERIÃO:

Então cuide dela! Eu não poderei estar com ela pra sempre. [Afrodite sorri. Muita dor.] Isso foi um sim.

AFRODITE:

Pode deixar. Eu cuido dela.

ASTERIÃO:

Obrigado.

AFRODITE:

À tarde você já deve estar melhor.




[Cnossos: salão de festas. Tarde. Minos, Pasífae, Ariane, Catreu, Deucalião e Freda almoçam com alguns criados, uma criada fica atrás de Pasífae, com Glauco no colo. Freda se enfia embaixo da mesa e cutuca Ariane.]

ARIANE:

[Entrando embaixo da mesa.] Por que você está embaixo da mesa?

FREDA:

Porque eu sou um cachorrinho! [Ariane ri]


[Uma fresta se abre na porta do salão. Por ela entra Teseu, seguido por seis rapazes e sete moças atenienses, todos com cara de poucos amigos. Minos levanta, alarmado.]

TESEU:

Minos?

MINOS:

Vocês são a oferenda?

ARIANE:

Oferenda?

TESEU:

Eu vim libertar minha [Ariane sai de baixo da mesa. Olhando para ela.] ci... da... de... desseeeee- [Volta a encarar Minos.] desse tributo injusto.

MINOS:

Perdendo o folego desse jeito? Duvido muito que consiga.

CATREU:

[Para Deucalião.] Eu duvido muito que consiga, qualquer que seja o jeito.

TESEU:

Pois eu vou conseguir, vocês vão ver só! Eu tenho Posseidon ao meu lado!

PASÍFAE:

Aquele velho rabugento? Ele não pode nem tocar- e- a-

CATREU:

O monstro é sagrado. Se você matá-lo, pode morrer.

TESEU:

Não importa!alguém tem que fazer algo pra deter esse doido. [Aponta Minos.]

MINOS:

Nós vamos ver isso. [sorrindo] Mas o sacrifício só acontece amanhã. Vocês não querem se jutar a nós? [Os atenienses ficam confusos.]

PASÍFAE:

Vocês não querem morrer de fome, querem?

DEUCALIÃO:

[Sussurrando para Catreu.] Se não fosse por Asterião eles iriam mesmo morrer de fome!

MINOS:

Vocês vão dormir no meu quarto, então é melhor que fiquem à vontade.

PASÍFAE:

[aborrecida.] Com licensa, já terminei. [Pega Glauco do colo da Criada e sai. Teseu sinaliza aos atenienser para sentarem à mesa.]

MINOS:

Estou surpreso! [Teseu senta-se entre Minos e Ariane.] Egeu realmente caprichou nas oferendas esse ano!

TESEU:

Você não tem vergonha de ser um assassino, tem?

MINOS:

Seu pai não foi muito sensato ao enfiar um machado na cabeça do meu filho dizendo que foi obra de um touro. [levantando] Com licensa, perdi a fome. [sai]

ARIANE:

Não liga pra ele não. É um assunto muito delicado pra família toda.

TESEU:

O que ele quis dizer com machado?

CATREU:

Teseu, não é? [Teseu faz que sim.] O que seu pai lhe disse?

TESEU:

Só que ele perdeu a guerra. Sofrendo muito pra admitir!

CATREU:

Bom, o fato é que Euriges, nosso irmão, voltou de Atenas morto, com um corte reto e profundo de uma das sobrancelhas até o topo da nuca. [Todos interrompem a refeição para fazer uma careta de nojo.]

DEUCALIÃO:

Por favor, Catreu. Há pessoas comendo.

ARIANE:

Bom, Freda disse que é um cachorrinho e não está nem aí pra o que Catreu diz. [Freda late, embaixo da mesa. Teseu sorri.]

CATREU:

Eu só estava respondendo à pergunta dele.

ARIANE:

[sorrindo] Deixa, Catreu. Depois do almoço eu conto a história pra ele!




[Cnossos: quarto de Ariane. Tarde. Teseu empurra Ariane, agarrado a ela, violentamente, prensando-a contra a parede, beijando-a.]

TESEU:

[Testa a testa com Ariane, respiração ofegante.] Muito interessante a sua história!

ARIANE:

[Testa a testa com Teseu, rindo.] Essa história besta não tem nada de interessante.

TESEU:

[Cheirando o cangote de Ariane.] Você deixa qualquer história interessante!

ARIANE:

[Sussurrando ao ouvido de Teseu.] Eu sou virgem. [Dá algumas risadinhas assanhadas.]

TESEU:

[Encarando Ariane, um sorriso malicioso no rosto.] Eu só acredito vendo.

ARIANE:

[Empurrando Teseu para a cama.] Vendo? Manda outra, essa indireta tá muito batida. [Deitando-se sobre Teseu.] Até eu já sei!

TESEU:

[Agarra Ariane e deita-se sobre ela.] É até bom que seja! Assim você nunca mais me esquece!




[Cnossos: sala do trono. Minos, sentado no trono, entediado.]

ZEUS:

[voz] Está chegando a hora, Minos.

MINOS:

Claro. Tudo que eu precisava era você me azucrinando hoje.

ZEUS:

[Agora diante de Minos.] Você ainda não sabe o que fazer?

MINOS:

A respeito de quê?

ZEUS:

A profecia Minos? Você esqueceu dela?

MINOS:

Pra falar a verdade, sim.

ZEUS:

[Depois de um longo suspiro.] E eu que praticamente forcei todos os deuses do Olimpo a me ajudarem...

MINOS:

Que comovente.

ZEUS:

Você está se tornando um velo muito rabugento, Minos. E nem é velho ainda. Você tentou descobrir o que fazer, ao menos?

MINOS:

Eu estou nem aí pro que puder acontecer com aquele moleque chato! Não sei que tragédia pode ser pior pra ele que essa vidinha miserável que ele escolheu.

ZEUS:

Apolo não te disse que a profecia é sobre você? A tragédia é sua, Minos, não é dele!

MINOS:

[curioso] Por que você não está usando aquele vocabulário pomposo dos deuses?

ZEUS:

Eu sou seu pai, Minos. Não sou seu dono. Ah!, e você está mentindo.

MINOS:

[confuso] Mentindo?

ZEUS:

[Com a voz de Minos.] "Eu estou nem aí pro que puder acontecer com aquele moleque chato!" [Some. Retoma sua voz.] E me parece que este é todo o problema.

MINOS:

Por que me ajudar agora?

ZEUS:

Já começou a acontecer. E eu acho que termina amanhã. Não me olhe assim, Asterião. Eu não sabia que você estava aí?

ASTERIÃO:

[Da janela, olhando para o ponto onde Zeus permanece, invisível.] Eu soube que o neto de Posseidon veio me matar, é verdade?

MINOS:

Esse seu hábito de vir me ver sem nenhum disfarce me irrita sabia?

ASTERIÃO:

[Sem desviar os olhos de Zeus.] Sei sim. Dá pra responder à pergunta? [Minos observa Asterião "conversar com o nada", indignado por ser ignorado.] Isso é coisa de Posseidon, não é? [Uma longa pausa deixa Minos aflito.] Que bom. Foi sobre isso mesmo que eu vim falar. [Mais uma pausa.] Não, mas a notícia de que esse garoto está aqui na ilha me deu algumas idéias. [Pequena pausa, interrompida por Minos.]

MINOS:

[irritado] Vocês querem me deixar em paz?! [Asterião olha para Minos, entediado. Um clarão de luz sugere que Zeus foi embora. Asterião ri.] O que foi agora?!

ASTERIÃO:

[rindo] Ele te chamou de pivete!

MINOS:

[irritado] Por que você também não vai embora?

ASTERIÃO:

[Parando de rir.] Vou já já. Mas eu tenho que conversar com você primeiro. [Minos jogar em Asterião um olhar fuzilante.] Sabe, é esse tributo imbecil. Acho melhor você desistir dele de uma vez?

MINOS:

Você está querendo me intimidar, garoto?

ASTERIÃO:

Só estou te dando uma última chance de ser justo.

MINOS:

Não vou voltar atrás com minha palavra.

ASTERIÃO:

Pena. Dessa vez eu não vou me privar de crueldade.

MINOS:

Não vai se privar? 14 corpos mutilados nos pontos mais freqüentados da ilha não foram crueldade?

ASTERIÃO:

Na verdade, não da minha parte, sabe? Eles já estavam mortos quando eu os encontrei.

MINOS:

Você devia se envergonhar de ter feito isso!

ASTERIÃO:

Infelizmente eu morro de vergonha! Mas eu tenho um bom propósito pra ter feito isso!

MINOS:

Ah é, esperto? Que propósito é esse?

ASTERIÃO:

Você vai saber amanhã. [sai]

MINOS:

Como ele consegue chegar aqui sem ninguém notar, em plena tarde?

CATREU:

[Saindo da câmara, acompanhado de Pasífae, que carrega um Glauco dorminhoco no colo, e Deucalião. Ambos com caras de pouco amistosas.] Só você não nota, pai.

MINOS:

Ai, hoje é o meu dia!

DEUCALIÃO:

Não enche, Minos!

MINOS:

O que vocês estavam fazendo aí?

PASÍFAE:

Verificando os preparativos da festa da oferenda. Isto é, até Zeus aparecer.

CATREU:

E eu não acreditei em nada do que eu ouvi aqui. Mamãe teve que me beliscar pra eu ter certeza!

MINOS:

Foi só um monte de implicância! O que há de tão escandaloso nisso?

PASÍFAE:

Não é possível, Minos! É muito egocentrismo! Desce do trono por um instante pra enxergar o que está acontecendo, homem!

DEUCALIÃO:

Mãe, a gente tá perdendo tempo. Pedra não tem suco, e, quando você consegue espermer, vira poeira que o vento leva embora.

CATREU:

Mas a gente tem que dar alguma chance pra essa [Aponta Minos.] pedra, que por acaso é nosso pai!

PASÍFAE:

É filho. A gente precisa completar a tragédia com um "eu avisei".

MINOS:

[Irritado, aos berros.] VÃO EMBORA!

PASÍFAE:

[Acalantando Glauco, que acordou com os berros.] Você grita demais quando é contrariado, Minos. Isso não assusta mais...

CATREU:

Ele nem quer ouvir mãe. Vai ficar ali, no trono, inventando alguma coisa pra não dar o braço a torcer. Vamos? [Pasífae e Deucalião fazem que sim.]

PASÍFAE:

Ariane vem fingindo que te ama há muito tempo. Freda está começando a lembrar Asterião. E nós já estamos muito cansados para continuar ao seu lado, meu rei. [Entregando Glauco a Minos.] Tente acertar ao menos com Glauco, porque ele será a sua última chance.


[Minos pega Glauco das mãos de Pasífae, e o observa, assustado. Catreu sai da sala, seguido por Pasífae.]

DEUCALIÃO:

[Saindo da sala.] A propósito: eu sei o que Asterião vai fazer. E ele nem precisou me contar o que é!


[Minos observa a porta por onde passou sua família. Uma imensa tristeza o invade, e ele abraça Glauco.]




[Cnossos. jardim do mar. Tarde. Teseu e Ariane, namorando, deitados sob a sombra de uma árvore.]

TESEU:

És como trigo,


Que alimenta os meus olhos


E não sacia a minha fome,


Mas necessário para viver.


[Fica de pé.]


Para meu corpo como água


Que vem minha sede matar


E sei que sempre vou precisar.


[Sobe na árvore e começa a jogar flores sobre Ariane.]

ARIANE:

Será um sonho?


Se for não quero acordar.


Desejo para sempre estar


Assim: bem perto de você!


Venha comigo


Sem esconder quem você é


Pro mundo inteiro saber


O que é ser feliz.

TESEU:

[Desce da árvore.] Sim,


[Colocando uma flor por trás da orelha de Ariane.] O som da harpa,


[Acariciando o rosto de Ariane.]


Que tão serena e vazia


Sempre agrada e contagia:


Assim vicia quem te ouvir.

ARIANE:

Será um sonho?


Se for não quero acordar.


Desejo [Abraça Teseu.] para sempre estar


Assim: bem perto de você!


[Levantando-se com Teseu.] Venha comigo


[Saindo da sombra com Teseu.] Sem esconder quem você é


Pro mundo inteiro saber


O que é ser feliz.


[Leva Teseu para o mar, correndo. Eles mergulham e brincam na água.]

TESEU:

[Abraçando Ariane.] Venha comigo!

ARIANE:

Para onde quiser!




[Labirinto: Centro do labirinto. Hades, Dédalo e Ícaro aguardam. Entra Asterião, acompanhado por Catreu.]

DÉDALO:

[levantando] E então?

ASTERIÃO:

O esperado.

DÉDALO:

Você tem certeza que vai levar isso adiante?

ASTERIÃO:

Ele não deixou outra alternativa.

CATREU:

E por que Teseu?

ASTERIÃO:

Eu não quero dar esse gostinho a Posseidon.

HADES:

[sorrindo] Bom, eu já vou pro salão, esperar. [desaparece]

ÍCARO:

E como você pretende fazer isso?

ASTERIÃO:

Com a ajuda de Ariane.

CATREU:

Aquela tonta? Não sei como ela pode ajudar.

ASTERIÃO:

Com o novelo de ouro.

DÉDALO:

Você vai entregar o novelo a ela?

ASTERIÃO:

Ela já está com o ele há uns oito anos.

ÍCARO:

Oito anos vindo aqui e ainda não sabe chegar sem ele.

ASTERIÃO:

É, eu sei que ela é lenta, mas ela faz tudo que eu peço!

CATREU:

E a gente, onde entra nisso?

ASTERIÃO:

[Para Dédalo.] A máquina que eu pedi, já está pronta?

DÉDALO:

E funcionando perfeitamente!

ASTERIÃO:

Vocês dois sabem que estarão cometendo um crime?

ÍCARO:

Sendo um crime justo, eu não me importo nem um pouco!

ASTERIÃO:

Catreu, Deucalião já sabe o que fazer?

CATREU:

Sim.

ASTERIÃO:

Ótimo. Então, comecemos.




[Cnossos. Fim de tarde. Asterião sai do labirinto, disfarçado, e segue até o pálácio. Sobre a marquise, escondendo-se atrás das colunas, ele caminha até a janela do quarto de Ariane.]


[Cnossos: quarto de Ariane. Ariane penteia o cabelo, sorridente e cantarolante.]

ASTERIÃO:

[Somente voz.] Ariane!

ARIANE:

[Virando para ver o irmão.] Asterião?

ASTERIÃO:

[Somente voz.] Eu preciso de um favor seu, minha irmã!

ARIANE:

[Indo até a janela.] Claro! O que quiser! [Vendo Asterião pela janela.] Você melhorou?

ASTERIÃO:

Sim. Afrodite trouxe um remédio. [Ariane sorri.] Está feliz! O que houve?

ARIANE:

Bem. Na verdade ainda há! Um rapaz ateniense, lindo, divertido, corajoso...

ASTERIÃO:

Ih! Mas que ânimo! Esse fogo todo só porque ele come bem é?

ARIANE:

ASTERIÃO!

ASTERIÃO:

[Imitando o jeito aluado de Ariane.] "Um rapaz ateniense, lindo, divertido, corajoso..." Sim, sei. [ri]

ARIANE:

[sorrindo] Ele quer fugir comigo!

ASTERIÃO:

Ué, e por que vocês ainda não fugiram?

ARIANE:

[Lembrando repentinamente.] Eu tenho que falar sobre isso com você!

ASTERIÃO:

Ué, mas já não estám falando?

ARIANE:

Não é isso! É que ele quer matar o monstro!

ASTERIÃO:

Peraí, você tá falando do tal de Teseu? [Ariane faz que sim.] Que engraçado. É sobre ele que eu vim falar.

ARIANE:

Ué? E o por quê comigo?

ASTERIÃO:

O novelo, Ariane.

ARIANE:

Você quer que eu entregue o novelo a ele?

ASTERIÃO:

Sim. E quero que explique como usá-lo.

ARIANE:

Tá. Eu explico.

ASTERIÃO:

E diga pra ele que eu estarei esperando por ele.

ARIANE:

Sim, sim. O que você quiser.

ASTERIÃO:

Tá. Vou indo então. Tchau!

ARIANE:

Tchau.

ASTERIÃO:

Ah! E boa sorte! [Ariane sorri.]




[Cenas aleatórias. Deucalião jogando sonífero na sopa enquanto nenhuma das criadas olha. Todos no palácio dormem, as luzes se apagam. Asterião sai do labirinto. Catreu sai do palácio. Asterião e Catreu recolhem todas as armas e armaduras de um depósito do palácio, colocando-as numa carroça. Deucalião e Ícaro colocam numa carroça algumas armas e armaduras que estavam dentro do palácio. Eles seguem para o porto, onde encontram Dédalo, que está a bordo de um barco movido a moinhos d'água. O mar está calmo. Eles embarcam os objetos que estão nas carroças. Dédalo e Ícaro giram os moinhos do barco, que segue adiante. Os cinco assistem o barco sumir no horizonte. Asterião volta ao labirinto, acompanhado de Catreu e Deucalião. Deucalião entrega a Asterião a espada de Minos. Asterião põe a espada sobre a cama e senta-se numa cadeira, enquanto Catreu e Deucalião saem. Amanhece. Os jovens atenienses vestem-se para serem ofertados ao minotauro. Em frente à porta do labirinto, pessoas festejam os sacrifícios que livrarão a cidade de terror por algum tempo. Teseu lidera os atenienses até o labirinto. Após fazerem a segunda curva, ele sinaliza para que os atenienses esperem. Teseu tira de baixo das pernas o novelo de ouro, amarra a ponta num galho cravado na terra e coloca-o no chão. O novelo começa a andar, sozinho, e Teseu o segue. O novelo termina de desenrolar, guiando Teseu até a clareira.]




[Labirinto: quarto de Asterião. Manhã. Asterião, sentado ainda na mesma cadeira, esperando Teseu.]

TESEU:

[Do lado de fora, grita.] ASTERIÃO!

ASTERIÃO:

[gritando] Não ente agora. [Pausa. Assumindo que Teseu não vai entrar, grita.] Você sabe que pode morrer?

TESEU:

[Do lado de fora, grita.] Eu não tenho medo de morrer!

ASTERIÃO:

[grita] Então você não vai morrer. ENTRA! [Observa Teseu abrir cautelosamente a porta do quarto, empunhando uma espada. Teseu procura por Asterião no quarto, confuso.] Eu sou Asterião.

TESEU:

V-você-? Mas- Ariane-

ASTERIÃO:

Ela não sabe.

TESEU:

Mas você pediu que eu viesse,- pra te matar?

ASTERIÃO:

Isso também. [Teseu deixa a espada cair no chão.] Você não está pronto?

TESEU:

Eu?- Estou- confuso!

ASTERIÃO:

Antes de tudo, você tem que saber: ao me matar, o que você mais teme que aconteça vai acontecer!

TESEU:

Estou- Estou disposto a arriscar.

ASTERIÃO:

[Indicando a cama.] Então sente-se. Eu tenho uma história pra te contar.




[Cnossos: salão de festas. Música e festa. Não há nenhuma mesa no salão. Comida e bebida se encontram nas janelas, por onde também passam muitas pessoas celebrando. Ariane está andando, pra lá e pra cá, aflita. Catreu e Deucalião estão sentados ao lado de Minos, que está sentado em uma poltrona, de frente para a porta, na outra ponta do salão. Minos conversa entusiasmadamente com um jovem guarda. Uma das bandas da porta do salão se abre, estrondosamente, revelando a metade direita de Teseu. Silêncio. Ariane fica eufórica.]

TESEU:

Eu tenho uma mensagem de Asterião pra você. [Minos observa-o, entediado.] Ele disse que você não merece o poder que tem, e disse que não estava se referindo ao seu reinado. E que ele estava cansado de fazer o que você deveria ter feito.

MINOS:

[entediado] É mesmo? E por quê ele não veio?

TESEU:

Na verdade ele veio sim! [Abre a outra banda da porta, revelando sua outra metade, segurando a cabeça de Asterião pelo chifre direito. Muitos murmúrios. Minos tremula.] Bom, pelo menos parte dele.

ARIANE:

[Murmura, eufórica.] Ele conseguiu! [Enquanto Teseu atravessa o salão, dando gritinhos de euforia.] Ele conseguiu, Catreu! Ele conseguiu!

DEUCALIÃO:

Fica quieta, Ariane!

ARIANE:

Ué, mas e Asterião, cadê?

MINOS:

[ganindo] Meu filho! [Teseu pára diante dele. Ainda ganindo.] O que você fez com meu filho?

ARIANE:

[confusa] Que filho? De quem ele está falando?


[Teseu estende a cabeça de Asterião.]

MINOS:

[Arrancando a cabeça de Asterião das mãos de Teseu, chorando, trêmulo.] Isso- isso não- não pode! Meu pequeno- pequeno Asterião. Asterião! Fala comigo! Por favor! Não é- não pode ser-

ARIANE:

Mas onde está Asterião?

CATREU:

[chorando] Morto Ariane!

ARIANE:

[Chorando, confusa.] Morto? Por quê?

DEUCALIÃO:

[Forçando Ariane a ver a cabeça de Asterião.] Aquele é Asterião, Ariane.

ARIANE:

[Chorando, confusa.] Não pode ser! Aquele é o monstro. Não é?

DEUCALIÃO:

Ariane, Asterião é o minotauro.


[Ariane dá um passo pra trás e começa a soluçar.]

CATREU:

[chorando] Eu vou chamar a mamãe. [Sai]


[Ariane berra de horror.]

TESEU:

Asterião deu a vida dele para salvar meu povo.

MINOS:

[Desesperado, murmura.] Assassino!

TESEU:

Ele ainda estaria vivo se você tivesse feito o que ele pediu.

MINOS:

[Berrando, desesperado.] Assassino! Tirem esse monstro daqui! Ele matou meu filho!

TESEU:

[Desembainha a espada de Minos e a põe diante dele, no chão.] Eu acho que não vou mais precisar disto. [saindo] Parece que Asterião estava errado sobre algo, afinal.


[Teseu sai, cruando o caminho de Pasífae, que entra jogando todos para os lados, desesperada, e congela ao alcançar Minos. Ela observa o marido ao chão, embalando a cabeça do filho, com a espada suja de sangue diante dele.]

MINOS:

[Erguendo a cabeça para falar com Pasífae, ainda soluçando.] Ele está morto Pasífae. [Volta a olhar para Asterião.] Meu filho está morto.

PASÍFAE:

[Observa a cena por alguns instante, chorando, e irrita-se com as pessoas ao redor.] Vocês não têm mais o que fazer, seu bando de abutres futriqueiros! SAIAM JÁ DAQUI!


[As pessoas saem correndo do salão, deixando cair comida e bebida para todos os lados. Pasífae se ajoelha e abraça Minos, também desesperada. Ariane berra até perder a voz, se recolhendo num canto do salão, agonizando, enquanto Catreu não sabe se entra ou sai do salão. Deucalião força-o a ficar no salão, fecha as portas e abraça o irmão, começando também a chorar.]

MINOS:

[chorando] Pasífae, fale. Pode falar!

PASÍFAE:

Falar?

MINOS:

[chorando] Eu preciso ouvir.

DEUCALIÃO:

[Lagando Catreu, berra.] Nós avisamos! Nós avisamos. [Traz Catreu até Minos e se ajoelham diante dele.] Pronto. Já falei.

MINOS:

[chorando] Eu sinto muito, meu filho! Eu vou sentir pelo resto da minha vida!

HADES:

[Atrás de Minos.] Não sinta tanto. Ele vai ficar bem.

ARIANE:

[rouca] Mas ele já está morto. COMO ELE VAI FICAR BEM!?

HADES:

Ele foi para onde todo herói morto vai, Ariane. E eu cuidei pessoalmente para que isso acontecesse!

DEUCALIÃO:

Você também já sabia?

HADES:

Claro que sabia. Eu o acompanho há muito tempo.

MINOS:

[Agarrando Hades, ainda desesperado.] Traga ele de volta, tio. Por favor!

HADES:

Não posso, meu filho.

MINOS:

[desesperado] Eu quero abraçá-lo de novo, só mais uma vez! Por favor, tio!

PASÍFAE:

[Afastando Minos de Hades.] Acalme-se, meu amor.

MINOS:

[desesperado] Eu não quero me acalmar, Pasífae! Eu quero meu filho!

PASÍFAE:

Minos, você precisa se acalmar. Você ainda tem cinco filhos que precisam de você, e uma esposa-

MINOS:

[desesperado] Não! Vocês não! Vocês desistiram de mim! Asterião nunca desistiu de mim! Eu quero ele!

ARIANE:

[Rouca, num lapso de inteligência.] Papai. Nós estamos aqui com o senhor agora, não estamos? E Asterião vai ficar bem no fim das contas. E se ele nunca desistiu do senhor, é melhor fazer jus à fé dele, han! [Minos a olha, derrotado. Levanta, anda até Minos e lhe estende a mão.] Venha! [Olhando para Catreu.] Se seu reinado tem se tornado um problema tão grande, [Retorna o olhar para Minos.] nós temos que preparar-lhe uma aposentadoria para começar ontem! Vem! [Sorri. Catreu levanta e tira a cabeça de Asterião do colo de Minos.]

MINOS:

[resmungando] E todo esse tempo nós achávamos que você era burra.

ARIANE:

[Saindo abraçada a Minos.] Bom, eu sou mesmo lenta. Isso eu não vou negar.


[Catreu entrega a cabeça a Deucalião e sai com Ariane e Minos.]

HADES:

Sabe, Zeus me disse que isso ia acontecer, mas eu não acreditei.

PASÍFAE:

Bom, eu ainda não acredito.

DEUCALIÃO:

Você acha que ele vai ficar bem?

PASÍFAE:

Graças a Asterião, ele vai ficar melhor do que nunca foi!

HADES:

Sim. E eu te garanto que nada deixará seu pequeno Asterião mais feliz.


[Foco no rosto de Asterião. Ele parece estar sorrindo, como nunca antes. Blackout.]