20 de out. de 2010

O Minotauro (Adolescência)

 

[Rua da cidade. Manhã ensolarada.]

PIVETE:

O que foi, aberração!? Não tem irmãozinho aqui pra te defender é!?

 

[Asterião, agora com quatorze anos de idade, com um semblante triste, em oposição ao seu semblante quando era criança. De costas pro pivete, segue andando.]

ASTERIÃO:

[resmungando] Gentinha desocupada!

PIVETE:

Vai mesmo! Corre pra mamãe! Quem sabe ela não cria juízo e te coloca de volta no ventre!

ASTERIÃO:

Pelo menos eu me viro sem ela! [Terminando de atravessar a esquina.] Tou melhor que você que não dá um passo além dessa quadra sem a sua!

PIVETE:

Eu vou até Atenas se eu quiser!

ASTERIÃO:

[Continua andando.] Então, atravessa pelo menos essa esquina! [O pivete resmunga algumas palavras inaudíveis e Asterião pára.] Por que você acha que eu vou perder meu tempo com você, se eu sei que, pra eu me livrar de você, basta eu atravessar a rua? [O pivete solta mais alguns ganidos. Voltando a andar.] Idiota!

PIVETE:

[Grita, irritado.] ABERRAÇÃO!

ASTERIÃO:

Tá batido!

PIVETE:

[Grita, irritado.] MONSTRENGO!

ASTERIÃO:

Sua mãe faz melhor que isso! Pelo menos eu tenho miolos!

PIVETE:

[Grita, irritado.] EU NÃO SOU BURRO!

ASTERIÃO:

Não, é idiota!

 

 

 

[Cnossos: cozinha. Manhã ensolarada. Pasífae dá instruções às criadas na cozinha, segurando o neném Ariane no colo, prestando atenção a Euriges, que está brincando serelepe, correndo por toda a cozinha. Asterião entra acompanhado de Catreu e Deucalião.]

CATREU:

Mamãe, eu vou demorar pro jantar hoje, tá?

PASÍFAE:

Não vai, não senhor! Você vai chegar na hora como todos os seus irmãos, e como em todos os dias!

CATREU:

Mas mamãe!

PASÍFAE:

Filho, isso está fora de cogitação! [Pausa. Catreu murcha.] Quando você vem jantar?

CATREU:

[desanimado] Quando o jantar estiver na mesa...

PASÍFAE:

E quando eu ponho o jantar na mesa?

CATREU:

[desanimado] Quando tudo está escuro, e todas as tochas estão acesas...

ASTERIÃO:

Mas é muito tonto você, viu, Catreu! [Para Pasífae.] Pode começar a preparar o jantar quando estiver tudo escuro e todas as tochas acesas, mãe! Acho que vai ser o tempo certo desse pulha fazer o que ele quer fazer e voltar! [Pasífae sorri. Catreu está confuso.]

PASÍFAE:

[Para a criada 2.] Avise a todos que as festividades da noite serão adiadas para o habitual horário de jantar. Hoje vamos todos jantar antes de dormir. [A criada 2 faz “que sim”. Catreu sorri.] E eu posso saber onde meu filho vai assim tão necessitadamente?

CATREU:

Erm... bem... é uma garota, sabe? [Pasífae sorri e faz “que sim”.]

ASTERIÃO:

Eu já falei pra você que não precisa fazer isso, Catreu!

PASÍFAE:

Ué? A garota é pra você, Asterião?

DEUCALIÃO:

Esquece mãe! Isso é assunto deles. E eles não querem falar sobre isso pra mais ninguém! [Pasífae olha para Deucalião, como que exigindo que ele lhe contasse o que está acontecendo.] Nem adianta me perguntar, mamãe. Eu também não tenho idéia do que possa ser!

PASÍFAE:

Tá! Se é tão secreto, eu não vou nem perguntar! [pausa] Só espero que não seja nenhuma arte dos dois!

CATREU:

[Sussurrando para Asterião.] Ela me disse que faz qualquer coisa por mim. Eu já disse o que queria, e ela já aceitou.

ASTERIÃO:

[Sussurrando para Catreu.] Mas ela sabe o que você pretende com isso?

CATREU:

[Sussurrando para Asterião.] Não.

ASTERIÃO:

[Sussurrando para Catreu.] Eu acho melhor você não fazer isso, Catreu! É muita sacanagem!

CATREU:

[Sussurrando para Asterião.] Eu não vou obrigar ela a nada, e também vou me divertir um pouco né!

ASTERIÃO:

[Sussurrando para Catreu.] Catreu, ela é mais velha que você!

CATREU:

[Sussurrando para Asterião.] Asterião, o que são dois anos de diferença de idade? [pausa] Relaxa meu irmão! Você ainda vai me agradecer por fazer isso!

 

 

 

[Cnossos: quarto de Asterião. Noite de lua cheia. Asterião está debruçado na janela, admirando as estrela. Pasífae põe a cabeça para dentro do quarto.]

PASÍFAE:

Você não vem, meu filho?

ASTERIÃO:

Não. Estou preocupado com a besteira que o Catreu vai fazer...

PASÍFAE:

[Entrando no quarto.] E o que é que ele vai fazer?

ASTERIÃO:

Não se preocupe... Logo todos vão saber...

PASÍFAE:

[Observa Asterião por alguns instantes e diz:] Tá!

ASTERIÃO:

[Pasífae está saindo do quarto.] Mãe? [Pasífae pára.]

PASÍFAE:

Fala, meu filho!

ASTERIÃO:

[Olha para a mãe.] Como eu era quando eu nasci?

PASÍFAE:

Como você sempre foi, meu filho. Sempre dando muito trabalho, mas sempre disposto a ajudar! Uma pessoa como qualquer outra!

ASTERIÃO:

Mas se eu sou como qualquer outra pessoa, por quê eu não sou humano?

PASÍFAE:

Porque você é divino, meu filho! E essa é uma singularidade sua!

ASTERIÃO:

Mas então eu não sou como qualquer pessoa!

PASÍFAE:

Asterião, qualquer pessoa tem singularidades! [pausa] Bom, qualquer pessoa normal! [Pausa. Asterião bufa e volta a admirar as estrelas. Pasífae volta a sair do quarto] Não se atrase pro jantar, tá? [sai]

ASTERIÃO:

Hunf! Divino! [pausa] Minha mãe tem cada uma!

 

 

 

[Cnossos: salão de festas. Noite. Muitas pessoas se divertem no salão. Muita música, trova e poesia. Minos está sentado ao lado de Pasífae, numa espécie de sofá redondo, tentando se entreter com os festejos.]

PASÍFAE:

Dá pra, pelo menos, fingir que você está se divertindo, meu amor?

MINOS:

Eu estou tentando, meu bem, mas fingir é algo que nunca consegui fazer com êxito! Você deve se lembrar o que aconteceu recentemente, quando aquele patife te chamou de ‘bruxa vagabunda’!

 

[Pasífae ri. As pessoas no salão silenciam-se subitamente. Minos estranha a atitude repentina, olha para as pessoas no salão e repara que todas elas olham, apavoradas, para um ponto logo ao lado dele. Ele vira a cabeça para verificar o ponto e dá de cara com Hades. Hades parece um homem comum, com roupas comuns e cores comuns.]

HADES:

[Sorrindo.] É bom saber que amas tanto tua esposa!

MINOS:

É oficial?

HADES:

Aviso-te quando não for mais.

MINOS:

Comunicado?

HADES:

Aviso. É sobre Asterião.

PASÍFAE:

Sobre meu filho?

MINOS:

Fique quieta Pasífae!

HADES:

O garoto é uma ameaça. Não é culpa dele, mas ele é. E é melhor que tu faças algo a respeito disso, antes que uma tragédia aconteça. Ele perderá o controle novamente.

MINOS:

Novamente? Com todo respeito, ele nunca fez nada. E se realmente é tão sério, vós deuses deveríeis dar um jeito nisso.

HADES:

Nós estamos fazendo nossa parte, mortal. Vim apenas pedir-te auxílio, pois precisarei.

MINOS:

Quando ele fizer algo digno de tal suspeita, tomarei uma atitude. Antes disso, nada farei.

HADES:

Se assim desejas. [pausa] Mas reforço: não é uma suspeita, é uma certeza!

MINOS:

Era só isso?

HADES:

Sim, pode dispensar as formalidades.

MINOS:

Há tanto tempo não vejo meu tio, é até chato que tenha sido assim.

HADES:

São ossos do ofício, Minos. Mas não vou reclamar. Já tem algum tempo que quero te ver. Você cresceu a beça!

MINOS:

É sim. E já sou rei e pai de família!

PASÍFAE:

Vai ficar dando trela pra esse desaforado, é, Minos?

MINOS:

Ah, me desculpe. Essa é minha esposa, Pasífae. [Faz um gesto de apresentação, indicando Pasífae.] Pasífae, esse é meu tio Hades. Ele é a pessoa mais doce que eu conheço

PASÍFAE:

Que doce mais estragado esse que você arranjou!

MINOS:

PASÍFAE!

HADES:

Tudo bem, Minos! Ela é mãe. Eu entendo.

PASÍFAE:

E o pior é que é doce mesmo! [Olhando para Hades.] Desculpa, viu! Me dá só um tempo pra raiva passar.

HADES:

Fique à vontade!

MINOS:

Fique para o jantar, tio! Eu quero lhe apresentar a família! [Hades faz “que sim” e senta ao lado de Minos. Para as pessoas no salão.] Parem de olhar com essa cara assustada! Ele não é o mensageiro do mal, nem capataz da morte! [pausa] E vamos voltar aos festejos, por favor!

 

 

 

[Cnossos: cozinha. Manhã chuvosa. Asterião está sentado a uma das mesas, entediado, com a cabeça deitada sobre a superfície da mesa. As criadas estão preparando um banquete, fofocando sobre a garota que não vai mais ser oráculo do templo de Posseidon.]

CRIADA 2:

Já tem tanto tempo aquele templo sem oráculo! Té parece que precisa!

CRIADA 1:

Não é essa a questão, sua burra! [Entra Pasífae] O que a gente tá discutindo é a burrice dessa garota de jogar uma oportunidade dessas fora!

PASÍFAE:

Vocês já estão de fofocagem a essa hora do dia?

CRIADA 4:

Bom. Não se fala em outra coisa na ilha inteira! Não é que eu ache lá grande coisa...

CRIADA 3:

Ah, mas é grande sim! Quem com juízo ia deixar passar uma oportunidade de ser oráculo?

PASÍFAE:

Ué? E quem desistiu de ser oráculo?

CRIADA 4:

Essa é a grande fofocada! Ela não desistiu!

CRIADA 1:

A infeliz achou que podia enganar os deuses!

PASÍFAE:

Ah, mas i- como assim?

CRIADA 2:

Arre! A rapariga andou fazeno sacanage com algum moleque por aí!

PASÍFAE:

Que tipo de sacanagem?

CRIADA 2:

Afe! Papai-mamãe! Tchaca-tchaca na mutchaca! Afogou a piriquita! Interrô o mastro! Afundô o barco! Entregou a xana! Queimou a xota! Liberô o tõin! Soltô a tarraqueta!

CRIADA 3:

[Sem graça.] Chega né?

CRIADA 4:

O fato é que ela tem que ser virgem pra ser oráculo! E agora que ela não é mais, perdeu o posto.

CRIADA 1:

Os mestres do templo tão pê da vida com ela! Já foi difícil encontrar uma menina que fosse pura o suficiente pra ser oráculo! Aí vem essa menina e dá pra esse garoto...

CRIADA 4:

[Olhando pra Asterião.] Que eu tenho certeza que sei quem foi! [Todas olham pra Asterião.]

CRIADA 2:

Oxe! Eu num acho que esse menino ia fazê uma coisa dessas co ela não!

PASÍFAE:

[zangada] Mas Catreu sim. [berrando] Asterião! [Todos se assustam. Asterião levanta instantaneamente.] Vá chamar o seu irmão e vão os dois pra meu salão. Agora!

ASTERIÃO:

[apavorado] Mas... mas qual deles...

PASÍFAE:

[berrando] Não se faça de desentendido!

ASTERIÃO:

T-tá... eu-eu-eu já tou indo! [Sai correndo.]

PASÍFAE:

[saindo] Vai sobrar castigo pra até depois da morte!

CRIADA 3:

[Para a criada 4.] Você e sua boca grande!

 

 

 

[Cnossos: salão da rainha. Manhã chuvosa. Várias mulheres distraídas no salão. Pasífae entra abruptamente no salão, assustando as mulheres. Todas param de fazer o que estavam fazendo e olham para a rainha. Pasífae atravessa rudemente o salão e pára em uma das janela, olhando para o horizonte.]

PASÍFAE:

[irritada] Saiam daqui, todas vocês! [As mulheres começam a se entreolhar e murmurar, confusas. Virando para as mulheres, grita.] AGORA! [Volta a olhar para o horizonte.]

 

[As mulheres começam a sair desesperadas, atrapalhando a entrada de Asterião e Catreu, que lutam para passar pelas mulheres e entrar no salão. Catreu consegue entrar antes do tumulto acabar, mas Asterião precisa se segurar à parede, na porta, e esperar que todas as mulheres saiam para conseguir entrar. Os meninos avançam cuidadosamente até o centro do salão.]

CATREU:

[receoso] M-m-

PASÍFAE:

[irritada] Se você tiver forçado a menina a fazer o que você queria, o castigo vai ser cem vezes pior que este no qual estou pensando! [Catreu olha para Asterião com um pouco de desdém.]

ASTERIÃO:

Eu não contei nada!

PASÍFAE:

Eu deduzi! Embora com alguma ajuda, DE UMA CRIADA!

CATREU:

[Resmungando para Asterião.] Fofoqueiras!

PASÍFAE:

Você sabe que eu posso fazer muita coisa com você, não sabe, Catreu? [Catreu engole seco e faz “que sim”.]

ASTERIÂO:

[receoso] E-ele fez que sim... m-

PASÍFAE:

Quando estiver respondendo a alguém que não pode te ver, tenha a decência de se pronunciar, Catreu!

CATREU:

[receoso] S-s-sim, sim senhora!

PASÍFAE:

E quanto a você, Asterião. A sua sorte é eu ter-lhe prometido que você seria muito feliz! Caso contrário receberia um castigo estaria à altura-

ASTERIÃO:

Mas eu não fiz nada!

PASÍFAE:

[irritada] Mas você sabia o que seu irmão ia fazer, e o acobertou!

CATREU:

[Resmungando, aliviado.] Que bom que a senhora fez essa promessa então!

PASÍFAE:

Muito bem, Catreu. Nada do que aconteceu entre você e aquela menina irá acontecer novamente entre você e outra fêmea, até que você seja rei, e tenha encontrado sua rainha!

CATREU:

Mas mãe, eu não forcei ela a nada!

PASÍFAE:

Se tivesse forçado, o castigo era pra vida toda!

CATREU:

Mas quando eu for rei não vou mais poder... Asterião é o herdeiro do trono-

ASTERIÃO:

Deixa de ser burro, Catreu! Vê só como o povo me ama pra me ter como rei!

CATREU:

Mas-

PASÍFAE:

Agora, Catreu, eu quero que você vá para o seu quarto e me espere por lá! [Resmungando enquanto Catreu sai.] Eu não preciso usar magia desde que eu tinha sua idade!

ASTERIÃO:

[Dá de costas com Pasífae, anda até a porta e pára. Olhando pra trás.] Mãe?

PASÍFAE:

[Virando para falar com Asterião.] Sim, meu filho.

ASTERIÃO:

Eu não sei o que você está fazendo pra cumprir a sua promessa, mas não está funcionando. [Sai.]

PASÍFAE:

Eu me esforço, meu bem! [Engasga com o choro que começa a surgir. Abraça os ombros e diz, chorando:] Eu me esforço tanto!

 

 

 

[Cnossos: quarto de Asterião. Manhã chuvosa. Asterião, deitado na coma, olhando pro teto. Minos passa pela porta do quarto, no corredor, volta abruptamente e entra no quarto.]

MINOS:

[Caminhando lentamente até a cama.] Por quê você não desceu para jantar ontem?

ASTERIÃO:

[resmungando] Tava sem fome!

MINOS:

Seus irmãos conheceram meu tio Hades-

ASTERIÃO:

É. Eles já vieram me encher os ouvidos hoje de “como o tio Hades é legal!” e “o povo faz um mau juízo dele!” e outras... coisas...

MINOS:

[Sentando na beirada da cama.] E qual o problema?

ASTERIÃO:

[resmungando] Parece que EU sou o problema...

MINOS:

Ah! Então esse é o problema!

ASTERIÃO:

Bom... se eu fosse um deus ninguém ia me incomodar por causa da minha aparência!

MINOS:

Asterião, o mundo é mais que aparência!

ASTERIÃO:

É? EXPLICA ISSO PRO SEU POVO PRECIOSO!

MINOS:

Ué? E isso agora é por causa deles? Achei que você não ligasse!

ASTERIÃO:

E não ligo... Mesmo sem eles, isso não faria muita diferença.

MINOS:

E qual é o problema então?

ASTERIÃO:

Esquece! Sua majestade nunca entendeu mesmo! Não parece que vai entender mais agora...

MINOS:

Asterião...

ASTERIÃO:

Me deixa sozinho tá! É o melhor que você sabe fazer.

 

[Minos se levanta e observa Asterião, que ainda não desviou os olhos do teto. Abre a boca pra falar alguma coisa, mas desiste, sob a indiferença de Asterião e sai. Asterião continua matutando na cama por alguns segundos, os olhos mexendo violentamente ao observar o teto.] (“Só aparece quando eu não faço algo que ele gostaria! Só sabe passar sermão, apontar os erros... ‘Tudo bem, meu filho?’; ‘Quer alguma coisa?’; ‘Posso conversar contigo?’; ‘Me dá um abraço, vai!’; mas não! Eu não preciso disso! Eu não sou nem humano, por que precisaria, não é?!) [Levanta e vai até o espelho de prata. Encara a própria imagem no espelho.] (Seria até engraçado se ele me visse e enxergasse algo além de um monstro! ... Seria engraçado se alguém me visse e enxergasse algo além de um monstro.”) [Uma estranha agonia o invade. De repente, realiza nitidamente que ninguém irá acolhê-lo como merece. Segurando o desespero que começa a fluir em seu corpo, se observa, com e sem ajuda do espelho, e passa a mão em vários pontos do rosto, chorando.]

 

Por quê eu sou assim?

 

Por quê eu sou assim?

 

Por quê sou tão diferente

 

do que há dentro de mim?

 

Por quê eu sou assim?

 

Por que eu sou assim?

 

O que eu ainda não fiz

 

para já ter esse fim?

PASÍFAE:

[Entrando no quarto.] Filho... [Asterião encara a mãe através do espelho.] Eu posso... responder essa pergunta.

 

[Pasífae conta a Asterião toda a história de seu nascimento: Desde a visita de Minos ao templo à promessa feita por ela no leito do parto. Profundamente chateado e decepcionado, Asterião abandona Pasífae sozinha no quarto.]

 

 

 

[Templo de Posseidon: Manhã chuvosa. Asterião entra no templo. Os mestres do templo vão até ele, exigindo que ele saia (“Isso é um ultraje!”; “Criatura infame”; “Arreda daqui!”...). Asterião deixa escapar um estrondoso mugido, assustando e afugentando os mestres, que saem correndo, desesperados.]

ASTERIÃO:

[berrando] Eu não fiz nada! Eu não tenho culpa! [pausa] DESFAÇAM O QUE VOCÊS FIZERAM!

POSSEIDON:

E por quê eu faria isso, mortal?

ASTERIÃO:

Porque o seu problema não é comigo!

POSSEIDON:

E daí?

ASTERIÃO:

“E daí?!” “E DAÍ?!” Vocês estão me castigando por algo que eu não fiz e você ainda me diz “E daí?”!

POSSEIDON:

Igualzinho ao pai! Não respeita, não conhece seu lugar...

ASTERIÃO:

Pois eu é que não quero mais me sujeitar a ninguém pra nada! EU NÃO PRECISO! Ainda mais um deusinho de baixo calão como você! [O mar se agita furiosamente. A roupa de posseidon também se agita, tornando-se mais opaca e larga.] O que foi? Estou esperando!

POSSEIDON:

Hades não conseguiu me convencer, o que te faz pensar que o farás!

ASTERIÃO:

Eu não quero te convencer a nada! Estou exigindo que vocês desfaçam o que fizeram! É um direito que eu tenho!

POSSEIDON:

Quem dita teus direitos, ser ignóbil, sou eu!

ASTERIÃO:

Pois eu posso lhe garantir que vocês vão se arrepender pelo que me aprontaram! As pessoas podem se calar e abaixar a cabeça diante do pavor que vocês representam, mas eu não vou ficar quieto! [Posseidon, furioso, arremessa o tridente em Asterião, mas o tridente meramente bate no peito dele e cai no chão. O mar se agita mais ainda. Ondas começam a lamber violentamente o chão do templo.] Você não entendeu mesmo? Você não pode me tocar! Nenhum bovino pode ser molestado em Creta se não estiver sobre um altar! O que me lembra... [Asterião vai até a pedra circular que representa o altar, levanta-a com as duas mãos, e arremessa-a contra os alicerces do templo. O templo desaba sobre ele, mas ele sai dos escombros e volta a encarar Posseidon.]

POSSEIDON:

Tiro-te daqui, elimino-te em outro lugar-

ASTERIÃO:

Mas como? Você não pode fazer nada contra mim! Nesta ilha, eu sou mais forte que qualquer deus!

POSSEIDON:

Posso encontrar outras formas de persuadi-lo-

ASTERIÃO:

Vai fazer o quê? Matar a minha família? Eles conhecem Hades! E nós sabemos perfeitamente como funcionam os domínios dele! Se você fizer qualquer outra coisas, eu mesmo posso comandar uma guerra contra você, de onde você estiver, daqui, sem precisar pôr um pé fora de Creta!

HADES:

[De repente, do nada.] E pode acreditar, meu irmão! Eu vou fazer o meu melhor pra ajudar se isso acontecer! [A pele pálida de Posseidon agora está rosada, e ele está literalmente espumando de raiva.] Chame Afrodite e desfaçam o que vocês fizeram. Se vocês não o fizerem, a tragédia será muito maior, e vocês, e Zeus, serão os maiores prejudicados!

POSSEIDON:

EU NÃO VOU CHAMAR NINGUÉM! O GAROTO VAI CONTINUAR ASSIM! E EU VOU FAZER O MEU MELHOR PARA QUE ELE CONTINUE COMO ESTÁ! [Uma onda cai violentamente sobre Posseidon, lenvando-o consigo.]

HADES:

Foi muita coragem enfrentar Posseidon assim.

ASTERIÃO:

É. Não importa. [pausa] Eu ainda tenho umas contas a ajustar, com o Rei de Creta!

 

 

 

[Cnossos: sala do trono. Manhã chuvosa. Minos está sentado no trono, observando a chuva cair sobre o aquário, quando Asterião entra, derrubando a porta. Minos dá um salto e fica de pé.]

MINOS:

[Olhando para a porta sob os pés de Asterião.] Mas... o que significa isso?!

ASTERIÃO:

[gritando] É tudo - culpa - SUA! E você ainda fica aí, passando sermão, dando lição de moral!

MINOS:

O que...? Do quê você está falando?

ASTERIÃO:

[gritando] O seu precioso povo sabe o que você fez pra se tornar rei? Alguém contou a eles?

MINOS:

Asterião, não...

ASTERIÃO:

[gritando] E todos esses anos eu pensando que o problema era eu!

MINOS:

Garoto, se você...

ASTERIÃO:

Mas não! Eu tinha que sofrer pelos erros dos meus pais não é?

MINOS:

O quê?!

ASTERIÃO:

Não tem importância pra você, não é? Agora que você pode gastar todo o seu tempo lustrando sua coroa e se vendendo nesse trono pra continuar no poder!

MINOS:

[irritado] Agora chega! Você não tem o direito de falar assim comigo! Eu te dei abrigo, te alimentei, te dei educação-

ASTERIÃO:

[Gritando, chorando.] Pros infernos com a sua educação! [pausa] Eu precisava de você, e era só isso, nada mais! [pausa] Uma vez por dia já estava bom! Mas nem isso você consegue fazer... desculpe, "vossa majestade não consegue fazer"!

MINOS:

Meu filho, eu-

ASTERIÃO:

[Gritando, chorando.] EU NÃO SOU SEU FILHO! [Minos paralisa. Pausa.] Engraçado! Essa é a segunda vez que você me chama de filho em toda a minha vida! E nessa situação, te confrontando, sabendo que não sou seu filho! Agora eu sei por quê eu não posso herdar o trono. É até um alívio descobrir isso agora. Pelo menos eu vou ter algum conforto na sua ausência. [Baixo e claro.] E, só pra constar: minha mãe me deu abrigo, me alimentou, me educou... Você, por ventura, sendo ou não meu pai, foi, e é, só o marido dela! [saindo] As coisas vão ser tão diferentes agora que eu sei a verdade!

MINOS:

[furioso] PASÍFAE!

 

 

 

[Cnossos. Manhã chuvosa. Asterião, furioso, segue para seu quarto quando o pivete se joga na frente dele, de dentro de um dos aposentos no corredor. Asterião pára abruptamente e encara o pivete por menos de um segundo, depois volta a andar, seguido pelo pivete.]

PIVETE:

Oi, besta-fera! [Começa a andar.]Eu saí do meu beco hoje, viu só? E so-zi-nho!

ASTERIÃO:

[Sarcástico, impaciente.] É?! Que bom pra você!

PIVETE:

[malicioso] E você? Já saiu da cola do seu irmão?

ASTERIÃO:

Você nem imagina o quanto!

PIVETE:

O bezerrinho tá fugindo é?

ASTERIÃO:

É melhor você me deixar em paz...

PIVETE:

Uuuuuuuh! Que meda!

ASTERIÃO:

[Pegando o pivete pelo pescoço e encostando na parede.] Sabe, eu realmente não quero perder meu tempo com um idiota!

PIVETE:

[assustado] Então-me-solta.

ASTERIÃO:

Claro! [Arremessa o pivete até o fim do corredor.] Volta pra saia da sua mãe!

 

 

 

[Cnossos: salão da rainha. Manhã chuvosa. Pasífae está sozinha, sentada em uma das janelas, passando as mãos na nuca, aflita. Minos entra, rugindo de fúria.]

PASÍFAE:

[Interrompendo Minos.] Pode parar aí, Minos. Enquanto você estiver assim eu não vou explicar nada!

MINOS:

Não interessa! Você me deve boas explicações!

PASÍFAE:

Pra falar a verdade, nada disso estaria acontecendo se você simplesmente tivesse sacrificado o touro...

MINOS:

MAS FOI VOCÊ QUEM ME PEDIU-

PASÍFAE:

Mas era o que você devia fazer! [pausa] Eu posso ser muito boa com meus encantos, mas nunca fui muito sábia com meus caprichos, e eu acho que você sabe disso.

MINOS:

Isso não diminui as suas responsabilidades a respeito disso! Nem livra você das explicações.

PASÍFAE:

Eu não disse isso, disse, Minos? Sabe, você tem que aprender a dar às coisas os valores que elas têm.

MINOS:

[Encara Pasífae por alguns instantes e diz:] Você tem razão. [saindo] O touro é uma prenda, e deve ser sacrificado.

 

 

 

[Templo de Posseidon. Manhã chuvosa. Minos vem puxando o Touro de Creta (Zeus) por uma corda ateada ao pescoço do touro. Quando se depara com as ruínas do templo destruído, larga a corda e corre até o templo.]

MINOS:

[desesperado] O altar? Onde... que MERDA! [Perde algum tempo lamentando não ter feito o sacrifício antes. Logo se irrita mais e volta ao touro. Erguendo a espada.] Que se dane minha vida. [Saca um golpe no pescoço do touro. A lâmina da espada atravessa a carne até sair pelo outro lado, mas a cabeça do touro continua no lugar. Perplexo, Minos encara o touro, olha para a espada e repara no sangue azul que ficou nela. Entediado.] Zeus?

ZEUS:

Notaste? Achei que nunca reconhecerias teu pai... Bem, tu realmente não reconheceste...

MINOS:

Que brincadeira é essa?

ZEUS:

É um gesto nobre, sacrificar tua vida por Asterião. Pena que não funcionaria...

MINOS:

O que você está fazendo aqui?

ZEUS:

Insubordinado como sempre! Viste o templo, Minos? Está daquele jeito porque Posseidon não vai desfazer o que fez a você, nem Afrodite o que ela fez a Asterião!

MINOS:

[confuso] Afrodite?

ZEUS:

Se eu não estivesse aqui, tu estarias morto! E em vão, sabe? Tu e Asterião vos tornastes os brinquedinhos favoritos de Posseidon e Afrodite.

MINOS:

Brinquedinhos?

ZEUS:

Se não fosse por mim, meu filho-

MINOS:

Eu não sou seu filho.

ZEUS:

Posseidon já disse; tua esposa acabou de dizer também! Eu ouvi. Não me faças repetir!

MINOS:

Até onde eu sei, vocês deuses tambêm.

ZEUS:

[sorrindo] Ao menos Hades consegue. Eu fiquei sabendo que ele te alertou sobre o garoto.

MINOS:

Isso não é da sua conta.

ZEUS:

Bom, [Apontando os destroços do templo com uma das patas dianteiras.] isso é só o começo. O garoto ainda vai aprontar muito mais até que faças algo a respeito.

MINOS:

Meu filho... fez... isso?

ZEUS:

Ele é teu filho agora? É engraçado como ele só é teu filho quando acontece algo extraordinário entre vocês! Apesar de eu não me lembrar disso ter acontecido com a frequência adequada também.

MINOS:

Hunf! Olha quem está falando!

ZEUS:

Você falhou como pai, Minos. E isto é tudo que esperava que não acontecesse, vindo de você.

MINOS:

E o que você entende disso?

ZEUS:

Eu não deixei você, nem seus irmãos, com qualquer pessoa! E fiz o mesmo por Asterião!

MINOS:

Asterião?

ZEUS:

Pára de repetir o que eu falo Minos! Eu já sei que você está confuso! Dá pra ver!

MINOS:

É que-

ZEUS:

É que você sempre me desprezou tanto por ser um pai tão ausente, não é? O filho mais novo, mal chegou a me conhecer, e eu tive que partir! [pausa] Eu nunca esperei muito de você como filho, mas achei que, como pai, você pudesse me dar um pouco mais de alegria. Mas não, foi uma decepção! Passou tanto tempo mergulhado na sua ganância, embriagado pelo seu poder, que se esqueceu de ser pai!

MINOS:

Ah! Tá bom! E você-

ZEUS:

Eu sei dos meus filhos, Minos! Eu zelo para que cada um deles me dê ao menos uma alegria!

MINOS:

É tudo sobre você, não é? Nós temos que agradar-te, oh! claro, todo-poderoso Zeus!

ZEUS:

E você nem isso tem! Simplesmente ignora a existência dos seus filhos, recentemente até de sua esposa! [pausa] Quantos filhos você tem, Minos?

MINOS:

[Tentando mudar de assunto.] Isso não vem ao caso-

ZEUS:

Você lembra os nomes deles?

MINOS:

[Se esforçando pra lembrar.] Tem, er, tem o-

ZEUS:

CATREU, DEUCALIÃO, EURIGES E ARIANE! 4 FILHOS MINOS!

MINOS:

[vitorioso] Há! Você esqueceu Asterião! São 5!

ZEUS:

Minos, Asterião é meu filho. [Minos recua. Sorrindo malevolamente.] O que eu posso dizer? Você não foi exatamente um marido também. Sequer um amante.

MINOS:

Aquela vaca!

ZEUS:

Aquela vaca o quê? Você nunca fez mais que cumprir com suar obrigações como rei, Minos! Não foi diferente com ela! Nem com teus filhos! E era sobre isso que ela estava falando. E sobre isso que Posseidon estava alertando! Eles são muito mais que seus súditos, Minos! Eles são sua família!

ASTERIÃO:

Não gaste seu verbo com ele! Ele não liga! Não enxerga nada além do precioso reino dele!

ZEUS:

Ele sacrificou a vida dele por ti.

ASTERIÃO:

Por mim? Duvido muito! No mínimo estava tentando evitar um fardo muito grande para o reino dele! [Fitando Minos.] Não é, majestade?

MINOS:

[resmungando] Era uma das conseqüências...

ZEUS e

 

ASTERIÃO:

Mas você é inacreditável!

MINOS:

O que você está fazendo aqui?

ASTERIÃO:

Estou indo para Galatas! Eu tenho um templo para destruir lá!

ZEUS:

Você o quê?

ASTERIÃO:

Eu não vou deixar nenhum altar permanecer intacto nesta ilha!

HADES:

Eu avisei, não foi? Agora é tarde! O menino já sabe! E eu pedi tanto que vocês desfizessem o que fizeram!

MINOS:

Vocês quem? Eu não-

ASTERIÃO:

Ele está falando de Zeus, sua besta!

MINOS:

Olha como você fala-

ASTERIÃO:

Vai fazer o quê? Você não pode me parar não! Nem os deuses podem. Majestade.

ZEUS:

Então você disse a ele, Hades?

ASTERIÃO:

Não. Mas não me surpreende mesmo assim.

ZEUS:

Só pra constar: eu não sabia que tu eras meu filho ainda...

ASTERIÃO:

Não importa. A maldade continua sendo a mesma!

ZEUS:

Ele tem mais sabedoria que você, Minos! Acho que o trono está com a pessoa errada.

HADES:

Deixe de ser cretino, Zeus. Minos é um bom rei!

ASTERIÃO:

Só não é bom com o resto!

ZEUS:

Ainda dá tempo de fazer algo a respeito!

ASTERIÃO:

Não adianta! O povo vem primeiro! Por enquanto eu só represento ameaça aos deuses!

MINOS:

O que você quer dizer com, por enquanto?

ASTERIÃO:

Quero dizer que é melhor ninguém me importunar por causa da minha aparência!

HADES:

Eu acho que estamos sobrando Zeus-

ASTERIÃO:

Não precisa ir embora, não! Eu só estou de passagem. Mesmo por quê eu não quero mais perder meu tempo com quem não merece! [Vai embora.]


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